L. A. Palmeirim
Chamava-se Romão Martinez. Quando se lhe perguntava de que provincia de Hespanha era, respondia invariavelmente, como todos os gallegos, que era do bispado de Tuy, antepondo assim a demarcação eclesiastica á civil; a honra de poder ao escapar receber a benção do seu prelado, á vanagloria de tirar o sombrero à rainha Izabel II.
Tinha 28 annos o Romão quando veia para Lisboa, e 50 quando julgou dever aposentar-se, logo diremos as razões. Quando chegou da terra era um mocetão desempenado, da força motriz de dez cavallos, mas triste e sombrio como um arcipreste do tempo de Filippe II, de lugubre memoria.
Os paes destinavam-no á egreja, e que iam fazer d’elle um abbade, que é das boas coisas que se póde ser em Hespanha: mas o rapaz era bronco como um aguazil, e emperrado no aprender, como um macho manhoso em despejar caminho.
- «Que vá procurar sua vida» resolveu a familia.
E ei-lo que parte uma bella manhá para Portugal trazendo uma carta de recomendação para um primo, aguadeiro do chafariz do Rato, homem que não fazia cara a pesos, e juntára um bom par de vintens, nos tempos felizes da industria gallega, quando os barris d’agua tinham cotação na praça, como os fundos publicos.
Os dois primos abraçaram-se, fallaram dos vivos e dos mortos, e foram ambos jantar á taberna do Nico, bacalhau cosido com batatas, a que o primo mais velho, por bizarria, additou azeitonas. Bebeu cada um d’elles o seu meio quartilho, ainda não estavam em voga os decilitros, e sairam arrotando a alho, e vermelho como uns tomates.
Ao outro dia estava já o Romão em mangas de camisa, e de sacco ao hombro á esquina do largo dos Inglezinhos. O primo receiando-se da concorrencia de um alarve que vendia saude, inculcára-lhe o chafariz da rua Formosa, como centro mais vasto para as suas operações industriaes, e desviára de si o parente.
A principio o Romão não se ageitava com a casa da malta, e o sonoro pregão dos companheiros parecia-lhe uma bicha de sete cabeças. D’ahi a mezes, as creadas de servir, que não tinham ordens expressas dos patrões em contrario, não queriam outro freguez. O caso explica-se. O Romão, nesse tempo, além de ser rapaz de contas lisas, era loiro e encaracolado, e sobredoirava estas prendas com a de ser segredeiro. Aquillo era um mais a mim, mais a mim, de fazer enraivar, todos os aguadeiros que vendiam dois barris d’agua por dia, enquanto que a elle, só o que lhe faltava era o tempo para subir e descer escadas.
Veio o fim do semestre. Então é que foi ganhar créditos! Emquanto elle dizia «arreda» punha ao hombro um bahu de seis arrobas, e se o hombro lhe falhava, para africas de maior monta, lá ia o cachaço, que era como uma alavanca. Para os outros fazerem a finesa de lhe chamar bruto, que tal elle não seria!
Quando acabaram as mudanças o Romão andava apalpado, mas não disse nem ai, nem ui. Pelo Natal escrevéra elle uma carta á mãe, a primeira depois que viera da terra, dizendo-lhe nos seus cantares, que não se apanhavam as trutas a bragas enxutas, que já tinha ao canto da arca cinco moedas e um quartinho, mas que se vira obrigado a botar nas costas um emplasto de péz de Bergonha, e a beber uns copintos de vinho branco, com umas pitadas de pólvora.
A carta que, como todas as missivas d’este género, principiava por «a minha ao fazer d’esta é boa graças a Deus», tão socegada deixou a velha, que entendeu que a escripta do filho não precisava resposta. O Romão também não se affligio com isso. Quando, passados dias, encontrou o primo, contou-lhe com a maior naturalidade que escrevera á mãe, e que esta lhe não respondera, acrescentando, como explicação, que, quando viera da terra, já a deixára como uma dor em frente da bocca do estomago, e que o algebrista lhe dissera que assim lhe morrera uma burra de que elle tratára, e que pelos geitos que a coisa ia tomando, lhe parecia que a mãe d’elle viria a estoirar.
A’ vista da não resposta á carta que o Romão mandara á mãe, concluiram os dois primos que se tinha cumprido a prophecia do curandeiro, e não pensaram mais no caso.
Correram os annos. O rapasola loiro e encaracolado, que era o ai Jesus das cosinheiras, e que por isso comia e bebia á tripa fôra por conta alheia, começou a sentir que já não estava para chibanças, que andava derreado dos quadris, que se queria barbear e não podia, por que a navalha lhe esbarrava nas pelancas das queixadas, finalmente que se ia abaixo da perna esquerda quando se queria firmar para acertar o passo com os companheiros, nas inaugurações solemnes de uns poucos de quintaes de ambulancias.
Para se preparar para o que diesse e viesse, o Romão deitou contas á sua vida, e principiou a emprestar dinheiro a juros, a pinto por moeda e ao mez, segundo as regras da baixa-finança, mas sem deixar de fazer recados, nem faltar ao serviço da bomba, nem mesmo, quando Deus queria, ás labutações dos fins dos semestres.
Elle, que a principio não punha preço ao trabalho, e se contentava com o que lhe davam, desde que se meteu a usurario todo lhe parece pouco.
Missiva amorosa não a entregava a menos de cento e vinte réis, e se era para casa com guarda-portão, dobrava a partida. Dizia elle que o officio tinha seus precalços, e que a prudencia mandava contar com a botica.
Ao contrario dos companheiros da casa de malta, que elle via morrer á fome para não gastarem dineiro, elle apenas começou a sentir-se achacado, tratava-se como um fidalgo, umas vezes a iscas de figado, e outras a dobrada, bebendo-lhe por cima um caldo de verduras. Queria viver para gosar.
O diabo, porém, que é o maior dos desmancha-prazeres que se conhece, entrou com elle de semana. O Romão começava a andar triste, a sentar-se no tampo do barril, a tirar fios de estopa de dentro do chinguiço, como quem desfolha malmequeres, a dar ais que pareciam mugidos, a deixar de untar os canêlhos com banha de porco, finalmente a dar todos os signaes de um desamparado da graça divina.
O Romão estava apaixonado! A' gallega: olho na mulher, olho no bahu, d'onde ella tirava a miudo basta quantia de caravellas de doze vintens.
Quem era a Ella do Compostelano? Vamos dizel-o. Na rua da Atalaya morava um tenente-coronel reformado, em companhia de uma irmã que recebia uma mezada avultada de um brazileiro, que lha deixára porque a quizera, o que não impedia que a visinhança rosnasse da liberalidade posthuma do testador.
O tenente-coronel era um paz d'alma, mal entrouxado dentro do casaco militar, que passava os dias a comer rebuçados, e, a pretexto de se curar de uma tose chronica, a tomar todas as noites um copo de leite fervido, antes de se deitar. Um palerma!
A sr.ª D. Justina, a irmã, era mulher de poucas letras e muitas carnes, sádia, palradora, amiga de saber das vidas alheias, e tendo a pesar de já entrada pela edade, uma certa vaidade no pé, que trazia sempre irreprehensivelmente calçado. Tinha também a mania de se decotar, e de pôr broches, com Cupidinhos na attitude de atirarem beijos, o que escandalisava a mulher de um procurador que morava portas fronteiras, e que cada vez que a via fechava a sua, resmungando por entre os dentes. «Farta sejas tu de beijocas até á consummação dos seculos»!
O que se sabia, era isto. O que se suspeitava era muito mais, mas não materia ainda tirada a limpo. Os dois manos tinham uma creada, a senhora Ursula, que resava pelo mesmo breviario patrôa, salvo na compostura do vestuario, talvez por não ter que dar ao manifesto. Pois foi com a Ursula que o gallego foi esbardar!
Havia já dez anos que o Romão servia a casa com toda a probidade, pela rasão simples de nada poder roubar nos rebuçados do tenente coronel, nem no fornecimento da casa, que D. Justina fazia directamente e por junto, n'uma mercearia da rua dos Calafates.
Os mesmo dez annos que durou o cérco de Troya, levou o Romão a atabafar a paixão que tinha pela Ursula, não se denunciando senão pela semana santa, em que a presenteava com uma quarta de amendoas, e dois pães de ló, de dez réis; e pelo entrudo em que se mascarava d'urso, para lhe ir bailar debaixo da janella, com acompanhamento de gaita de folles. Um homem que durante dez annos teima em ser urso, chega a conseguir o que deseja. Foi o que aconteceu ao Romão, que se lambia solto havia 40 annos, e se deixou cair na areosca de um casorio, de que logo veremos as consequencias.
Era um domingo do mez de maio. Ergueu-se o Romão pela estrela d'alva, vestio camisa lavada, coisa que religiosamente practicava de 15 em 15 dias, engraixou as sapatas, calçou-as, vestiu a jaleca de belbutina, e sahiu pela porta fóra assoviando, prenda que os companheiros lhe desconheciam. D'ahi a tempos voltou trazendo o cabello cortado á escovinha, e na mão um pequeno papel, com apparencias de sobrescripto. Sentou-se á beira do catre, acalcanhou as sapatas que lhe estavam a roer os tornozêllos, e com um sorriso de beatitude, chamou os dois unicos companheiros que n'aquella occasião estavam na casa de malta, e disse-lhes:
- Pois não querem vocês vêr as alhadas em que eu me metti? Pois esperem que eu já lhes mostro a reinação. E desembrulhando o papel, mostrou-lhes um retrato, que fôra tirar a uma photographia á Pena de França, a rasão de cruzado a duzia. É inutil dizer que o Romão apenas mandára tirar seis. Dois para os patrões da Ursula, dois para mandar para a terra, e os dois restantes, um para si, e outro... para os leitores que adivinhem se poderem.
- «Então que me dizem vocês a esta veronica? Elle sempre se inventam coisas do diabo! Põe-se a gente deante d'um bocado de vidraça, e sai a cara da gente! Até este raspão que tenho na bochecha, o demo do homem passou para o papel! Heim?? Que tal?
- « Verdade, verdade, disse o Bento, você pintado está melhor do que de carne e osso. Que dizes tu, Manuel?
- « A bem dizer, melhor não digo que esteja. Acho lhe assim os olhos a modo vêsgos. Mas o que eu digo é que a tinta se não faz melhor. Mas para que queres tu isso, ó Romão?
- « Eu cá me entendo, disse este, dobrando cuidadosamente os retratos.
E puchando acima os contrafortes das sapatas, e assoviando como quando saira pela primeira vez, entestou pela rua da Atalaya, direito á casa em que morava o tenente coronel, a D. Justina, e a dona dos pensamentos do boçal gallego, que de tal propriedade pouco ou nada devia pagar ao fisco.
Que qualidade de bicho era a Ursula? Vamos sabel-o desde já. O tenente coronel e a irmã tinham ido á missa a S. Roque, e tencionaram demorar-se, por que havia chrisma e bôdo aos pobres, e a D. Justina não era mulher para perder festas de graça. O gallego sabia-o, e por isso aproveitara a occasião. Foi direito á cosinha, já sua muito conhecida, e sentou-se num escabello, enroscando as pernas nos pés do môcho, para aligeirar os pés do peso das sapatas. A Ursula estava migando cebôla para um refugado, e as lágrimas caiam-lhe a quatro e quatro pela cara abaixo, o que o namorado Romão tomava por lagrimas de alegria pelo vêr junto de si.
«Venho aqui mostrar-lhe uma coisa, e dizer-lhe outra. E puxando pelo retrato, e apresentando-lh'o, acrescentou: «Então que me diz você ao da Joanna?
« Ai! Que é vocemecê pintado! Ai! que está tal qual como o patrão, quando lhe puzeram a cara nos papeis publicos, por elle ter saido juiz da irmandade do Santissimo cá da freguezia!
- Mas que lhe parece? Diga, que eu cá não me offendo.
- Parece-me que você está muito bem conservado para a edade, e para a faina em que anda.
- São favores seus, e que eu não boto fóra, porque ando com a áquella de casar com a sua pessoa.
- Commigo! Com uma mulher que já trintou ha tantos annos!
- Eu não sei se você trintou ou deixou de trintar. O que sei é que está como umas natas. E depois, um pão com um bocado, e conforme for o bocado, póde vir a deitar dois pães, sem mingua no peso. Não sei se me percebe. Eu tenho para riba de sessenta moedas, que andam a correr mundo. Cá pelos meus calculos vocé não anda longe d'isto. E vae depois, sessenta com sessenta, faz cento e vinte, sem contar com a sua pessoa, para os noves-fora. Entende?
- Não ponha mais na carta. Quem primeiro vae á fonte... Ora o diabo!
- Eu era então rapariga, e o sr. tenente coronel só muito tempo depois é botou as divisas de capitão. N' esse tempo a sr.ª D. Justina também andava com o miôlo a rasão de juros, por causa de um brasileiro, que tanto era ella abrir a bocca, como elle a dizer cá estou eu para te servir. Você não imagina que vida regalada a senhora levou por muitos annos... e eu á sombra d'ella. Depois o homem morreu, e nem era mesmo ao abalar cá d'este mundo se esqueceram della. Depois o homem morreu, e nem mesmo ao abalar cá d'este mundo se esqueceu d'ella. Mandou chamar o tabellião, e poz no testamento vinte contos de réis para a senhora, que hão de vir a passar para umas sobrinhas que o homemzinho tinha no Maranhão. Só as pragas que a sr.ª D. Justina lhe rogou, por elle lhe ter posto a calva á mostra com a deixa! Depois veiu viver para a companhia do irmão, e depois o que eu já lhe contei... sem nada lhe ter contado.
- Sabe o que lhe digo, menina Ursula? E que eu não sou homem de voltar com a palavra atraz. Quer você casar comigo, ou não quer?
- Eu dizer-lhe que não, não digo; mas também dizer-lhe que sim, não digo. Eu sou uma mulher verdadeira. A minha idéa sempre foi casar com o sr. tenente coronel. Sempre é homem que põe uma banda á cinta. Falei-lhe n'isso, e elle respondeu:
- Eu, cá por mim, tanto se me dá, como se me deu. Mas olha tu que eu nunca entrei para o monte-pio, e se fecho o olho, tu ficas peor do que estás. Homens não faltam. Deita-te ao solido, que isto dos galões não presta para nada.
- O homem tem o juizo no seu logar, additou o gallego. Pois sabe que mais, boto-me a elle para padrinho, e você, quando calhar a talhe de fouce, falle á D. Justina em a levar á egreja. Eu cá por mim, só ponho um condição: é que você não ha de ir ao casorio vestida á franceza. Quero-a de capote e lenço. O branco hade-lhe ir muito bem á physionomia do rosto. Lá diz a cantiga:
Muito brilha o branco pano,
Ao pé do branco lavado;
Muito brilha uma menina
Ao pé do seu conversado.
E zás... deu um abraço na Ursula, e abraço foi elle, que a mulher para se desenvercilhar do alarver, lhe chegou aos olhos com a cebola que estava picando, pondo lh'os vermelhos como um pimentão.
Nisto chegavam a casa do tenente coronel e a irmã, altercando um com o outro, ella acusando-o de não ser homem, por a não ter despicado de um hadamero que lhe dissera coisas pouco orthodoxas a proposito dos Cupidos do broche. O tenente-coronel dizendo que a culpa era toda d'ella, porque o que Deus lhe dera para mostrar o queria, alludindo aos decotes exaggerados da mana.
Estacáram ao vérem o Romão que se queixava de um argueiro que lhe entrara no olho direito, e pedia licença para o refrescar no alguidar da cosinha. Passemos em claro as scenas domestias que se deram na rua da Atalaya, desde que a Ursula deu parte aos patrões dos seus projectos, até ao dia em que o gallego deu o sim fatal na egreja das Mercês, e foi passar a lua de mel para a quinta da Rabicha.
O que presta para a nossa historia, é saber-se que o Romão, seis meses depois de casado, já não podia ver a mulher com os dois olhos que tinha na cara, e que ella lhe pagava na mesma moeda chamando-lhe lapuz, javardo, e Escariote, offensa esta que o gallego não podia tragar.
Viver assim, era viver no inferno. Um dia o Romão entrou em casa com os seus azeites, e o Deus te salve da mulher foi: «A' hora da comida sempre o diabo traz mais um!»
O gallego sentou-se e falou assim: «Isto de casamento não é o Limoeiro. Porque um homem faz uma asneira não se segue que fique toda a vida debaixo da canga. Amanhã toca a dividir em boa paz o que é de cada um de nós, que eu vou-me para a terra, e você que o diabo a leve para onde não faça falta.»
A Ursula ouviu-o sem pestanejar, e replicou:
- Não fôra você gallego, que já não zurrava d'essa maneira. Se cuida que me visto de luto, engana-se. Em casa do tenente coronel nunca me ha de faltar o café com leite ao almoço, que eu já não provo vae para seis meses. Quem vive como um porco, que remedio tem senão fossar na gamella.»
« - Cuidado, cuidadinho com a língua. Por ser o fim do semestre não queira você que eu lhe ponha scriptos na cara.
E levantou-se assoviando. Era a terceira vez na sua vida. Dahi a dias tinha o Romão chegado á terra ~. O abbade foi visital-o, e perguntou-lhe pela mulher. Respondeu-lhe estoicamente que a puzera com dono. O padre quiz prégar-lhe um sermão, ameaçando-o de náo o absolver para a quaresma, e pretendendo explicar-lhe que o casamento era um dos sacramentos da egreja, por sua natureza eterno e insoluvel, mas o escabriado gallego replicava que também elle abbade, lhe dissera que os pecados mortaes eram sete, e que aligeirando-se de um, ainda tinha que levar seis aos pés do confessor. O abbade viu que era uma ovelha perdida que lhe voltava ao redil, e dizia depois a quem o queria ouvir, que mau era um homem correr terras onde se traduziam livros do francez, e aonde os senhores reis eram escravos das constituições.
A Ursula apenas o marido virou as costas, abriu uma loja de capella, e poz-se ao balcão a vender cigarros, e boisinhos de papelão, fazendo allusões grotescas ao ausente, e dando tréla aos freguezes que não cheiravam, mas que, por debique, lhe pediam do meio grosso.
Diz-se que se não deve perguntar o fim das historias, mas eu é que não estou de accordo. Respondo mesmo sem m'o perguntarem. O tenente-coronel ia todas as tardes passeiar a S. Pedro d'Alcantara, e á volta sentava-se na loja de capella da Ursula, a quem pedia um copo de agua fresca. Era um affecto macrobio que se rejuvenescia com agua do pote. Um dia veiu, sentou-se mas não se tornou a levantar. Morrera de uma lesão cardiaca. Não deixou testamento nem teve necrologio. Que feliz homem!
A irmã, quando soube que ficara no mundo só, teve um chelique. Esquecendo antigos aggravos, acudiu-lhe a mulher do procurador, esfregando-lhe as fontes com vinagre de sete ladrões, e dando-lhe a cheirar estopa queimada. Apenas voltou a si começou a berrar que queria a Ursula, que não tinha quem lhe désse um caldo, que queria morrer junto d'aquella que lhe sabia os seus segredos. A Ursula, que andava já com a loja em debandada, acudiu ao chamamento, allegando que estava prompta a sacrificar os seus interesses ao bem estar da sua patroa. Houve abraços, beijos, lagrimas, coisas estupendas!
E o Romão Martinez, que foi feito d'elle? Nos ultimos anos de vida parecia andar matuto. Em vendo mulher, benzia-se. Em topando com militar fazia-lhe cruzes e dava uns roncos, como de animal selvagem.
Mas não foi doi que o homem morreu. De uma carta recebida na casa de malta, consta que o Romão morrera de um antraz, que lográra perfurar-lhe a rija crusta do cachaço, que elle durante tantos annos exposera ás injurias do chinguiço.
Diz-se do soldado que morre no campo da batalha – que morreu no seu posto. Do Romão pode-se affirmar, que acabou os seus dias debaixo do honroso emblema do trabalho, como os almirantes heroicos morrem envolvidos nas bandeiras que juraram defender.
NOTAS dos EDITORES
Na transcrição do texto foi conservada a ortografia original.
Informação sobre Almeida Garret e Ilustração Portuguesa em FONTES
FONTES
Ilustração Portuguesa. (2025, fevereiro 16). In Wikipédia, a enciclopédia livre https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ilustra%C3%A7%C3%A3o_Portuguesa_(1884)&oldid=69571290.
Luís Augusto Palmeirim. (2024, janeiro 27). In Wikipédia, a enciclopédia livre https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Lu%C3%ADs_Augusto_Palmeirim&oldid=67376252.
Palmeirim, L. A. (1885). Aventuras de um gallego. Illustração Portugueza. Semanario. Revista Litteraria e Artística, 9, 3-4. https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/AIlustracaoPortuguesa_Semanario_1884_1890/1885/Setembro/N09/N09_item1/P3.html