Os Galegos, nosos irmáns
Ângelo Henriques
Neste tempo de Verão que se diz de Outono, remexo em coisas velhas e revejo com agrado o meu pequeno livro de Geografia (Col. Escolar Progredior) da 4ª Classe. Entre o desfiar de páginas amarelecidas detenho-me nos sistemas orográficos, entre os quais o galaico-duriense que abraça ainda a Beira Alta pelo Norte e as terras do Côa. E este termo galaico traz-me à memória a Galiza que visito amiúde, esse pedaço de território do país vizinho onde Portugal teve origem.
Os galegos foram aquele povo celta encontrado, tardiamente, por Decimo Junio Bruto, acima do Douro, cobrindo o noroeste peninsular até Fisterra (Finisterra). Seguiu-se o reino suevo da Gallaecia (limitado a Sul por Coimbra, Santarém e Idanha) com a sua capital e a sua sede eclesiástica em Braga e assim permaneceu até ao Século XII, momento em que Portugal deixou de pertencer à Galiza e ao Reino de Leão para, com personalidade própria, fazer a sua caminhada em direção ao Sul. Portugal foi criação dos homens do Norte e da Galiza veio a alma coletiva, os seus topónimos, um tronco sócio- geográfico de usos e costumes que a linha de fronteira raras vezes consegue destrinçar. Além disso, a língua foi sempre fator predominante e unificador que torna portugueses e galegos ainda mais irmãos, reforçando o tronco comum de origem.
Nesse sentido, Alexandre Herculano na sua obra Typos Portugueses e Outros Scriptos sintetizava as relações de afinidade referindo o galego como o “ovo” da monarquia de Portugal e escrevia: “Afôra o nome, ela herdou da Galliza bom quinhão de território, parte da população, os mais ilustres nomes da sua velha aristocracia, muitos costumes e finalmente a língua, que hoje, senhoril e desdenhosa olha com sobranceria para o antigo dialeto que lhe deu origem. Nenhuma creatura, que saiba aos nomes dos bois em história, pode volver os olhos para o extremo horisonte do nosso passado, que não enxergue, ao cabo lá, a Galiza”.
Na vertente sociocultural, galegos e portugueses conservam traços que já vêm do tempo das Descobertas, tais como a emigração maciça, o apego à terra, às tradições locais. Muitos galegos vieram para Portugal e na primeira metade do Século XX faziam parte integrante da paisagem humana deste país, tanto nos concelhos vinhateiros do Douro como em Lisboa, levando Eduardo Noronha a escrever em Memórias de um Galego: “Os portugueses vão para o Brasil, nós vamos para Portugal, é mais perto, melhor caminho e ganha-se mais dinheiro». E Aquilino, nada indiferente a tal nicho populacional, em Lápides Partidas (1945), refere um galego, de Porriño, que escreve à mulher: “A terra é boa, a xente é tola, a auga é deles e nós vendemoslla”. E sobre a expressão “trabalhar como um galego”, esta aporta trabalho duro, tanto no sentido positivo de exímio trabalhador, incansável, mas também na vertente negativa, evidenciando apenas força física, tal como um animal de carga. E nessa esteira de trabalho dedicado e vigoroso, outras expressões populares povoam a nossa língua, tais como anda galego, filho de um galego, parece que pariu a galega.
Na minha terra, VF Naves, existia um comerciante galego, o Senhor Germano Domingues, abastado, com negócio de fazendas brancas e lanifícios e também não esqueço D. Pepe, dono de um tasco típico e antigo, ao lado da Estação de Sta. Apolónia, que sempre visitava em tempos de partida e chegada a Lisboa quando a farda da tropa era o meu vestuário permanente. E sempre que visito a Galiza, seja mais perto da fronteira fluvial seja mais para Norte, sinto uma afinidade natural, próxima, no meu dia-a-dia de viajante que pareço não ter saído da minha terra. E até a Meteorologia da Televisión de Galicia informa também sobre o tempo no Norte de Portugal.
E há ainda a vertente cultural, os escritores, os pintores que vão traçando a cores pontes luso-galaicas de um intercâmbio frutuoso com gentes de todo o Norte, sobretudo do Porto, onde a Galeria Vieira Portuense é o expoente máximo dessa interligação. E para terminar, antes de um “polbo á feira” e ouvindo “Un Canto a Galicia”, deixo passar esta inconfidência: “Quienes llevamos a nuestra tierra muy dentro de nosotros, sentimos ‘sus latidos, sus silencios, sus llamadas’, todo es cuestión de sentimentos (...)’ ” – foi um escrito dirigido ao signatário pela pintora galega Mary Carmen Calviño na sua página pessoal, sobre o título desta coluna “Latidos da Minha Terra”, expressando a sua satisfação pelo sentimento de ligação às minhas origens, tal como acontece com as gentes da Galiza.
P.S. O Lobo Guerrilheiro, de Bento da Cruz, um dos meus livros de férias. A realidade das terras do Barroso (Montalegre), o contrabando com a Galiza, a Guerra Civil de Espanha, os amores desenfreados de juventude de um rapaz, filho de lavradores. Um belo romance integrando uma total similitude com o que se passou, de modo coevo, na zona raiana da Beira.
NOTAS dos EDITORES
Este artigo foi publicado no jornal Terras da Beira no dia 13 de Outubro de 2016.
Ângelo Henriques. Vila Franca das Neves (Trancoso), 1955. Economista reformado.